segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

A agonia do colesterol

  • Nunca me convenci de que essa obsessão de baixar o colesterol à custa de medicamentos aumentasse a longevidade de pessoas saudáveis.
  • Essa crença --que fez das estatinas o maior sucesso comercial da história da medicina-- tomou conta da cardiologia a partir de dois estudos observacionais: Seven Cities e Framingham, iniciados nos anos 1950.
  • Considerados tendenciosos por vários especialistas, o Seven Cities pretendeu demonstrar que os ataques cardíacos estariam ligados ao consumo de gordura animal, enquanto o Framingham concluiu que eles guardariam relação directa com o colesterol.
  • A partir dos anos 1980, o aparecimento das estatinas (drogas que reduzem os níveis de colesterol) abafou as vozes discordantes, e a classe médica foi tomada por um furor anticolesterol que contagiou a população. Hoje, todos se preocupam com os alimentos gordurosos e tratam com intimidade o "bom" (HDL) e o "mau" colesterol (LDL).
  • A FDA em directrizes publicadas no ano 2001 recomendava manter o LDL abaixo de cem a qualquer preço. Ainda que fosse preciso quadruplicar a dose de estatina ou combiná-la com outras drogas, sem qualquer evidência científica que justificasse tal conduta.
  • Apenas nos Estados Unidos, esse alvo absolutamente arbitrário, fez o número de utilizadores de estatinas saltar de 13 milhões para 36 milhões. Nenhum estudo posterior, patrocinado ou não pela indústria, conseguiu demonstrar que essa estratégia fez cair a mortalidade por doença cardiovascular.
  • Cardiologistas radicais foram mais longe: o LDL deveria ser mantido abaixo de 70, alvo inacessível a mortais como você e eu. Seríamos tantos os candidatos ao tratamento, que sairia mais barato acrescentar estatina ao suprimento de água domiciliar, conforme sugeriu um eminente professor americano.
  • Pois bem. Depois de cinco anos de análises dos estudos mais recentes, a American Heart Association e a American College of Cardiology, entidades sem fins lucrativos, mas que recebem auxílios generosos da indústria farmacêutica, atualizaram as diretrizes de 2001.
  • Pasme-se, leitor de inteligência mediana como eu. Segundo elas, os níveis de colesterol não interessam mais.
  • Portanto, se seu LDL é alto não fique aflito para reduzi-lo: o risco de sofrer ataque cardíaco ou derrame cerebral não será modificado. Em português mais claro, ESQUEÇA TUDO O QUE FOI DITO NOS ULTIMOS 30 ANOS.
  • A indústria não sofrerá prejuízos, no entanto: as estatinas devem até ampliar sua participação no mercado. Agora serão prescritas para a multidão daqueles com mais de 7,5% de chance de sofrer ataque cardíaco ou derrame cerebral nos dez anos seguintes, risco calculado a partir de uma fórmula nova que já recebe críticas dos especialistas.
  • Se reduzir os níveis de colesterol não produz alguma proteção, por que insistir nas estatinas? Porque elas têm ações anti-inflamatórias e estabilizadoras das placas de aterosclerose, que podem dificultar o desprendimento de coágulos capazes de obstruir artérias menores.
  • O argumento é consistente, mas qual o custo-benefício?
  • Recém-publicado no "British Medical Journal", um artigo baseado nos mesmos estudos avaliados pelas directrizes mostrou que naqueles com menos de 20% de risco em dez anos as estatinas não reduzem o número de mortes nem de eventos mais graves. Nesse grupo seria necessário tratar 140 pessoas para evitar um caso de enfarto do miocárdio ou de derrame cerebral não fatais.
  • Ou seja, 139 tomarão inutilmente medicamentos caros que em até 20% dos casos podem provocar dores musculares, problemas gastrointestinais, distúrbios de sono e de memória e disfunção eréctil.
  • A indicação de estatina no diabetes e para quem já sofreu ataque cardíaco, por enquanto, resiste às críticas.
  • Se você, leitor com boa saúde, toma remédio para o colesterol, converse com seu médico, mas esteja certo de que ele conhece a literatura e leu com espírito crítico as 32 páginas das novas directrizes citadas nesta coluna.
  • Preste atenção: mais de 80% dos ataques cardíacos ocorrem por conta do cigarro, vida sedentária, obesidade, pressão alta e diabetes. Imaginar ser possível evitá-los sentado na poltrona, às custas de uma pílula para abaixar o colesterol, é pensamento mágico.

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